Quero ressaltar logo de início que essa matéria não teria
sido composta sem a ajuda inestimável de Urânia Dias, uma angolana que nasceu em
Lubango, mas que atualmente reside na cidade portuguesa de Sesimbra. Urânia foi
me apresentando alguns artistas angolanos e me direcionando para alguns sites
específicos da cultura daquele povo, bem como colaborando com o envio de
algumas imagens. Foi através dela que cheguei a Adriano Mixingue, cuja
publicação na página do Consulado de Angola também foi de extrema valia. Muito
ajudaram também as lembranças da visita que fiz ao Museu do Homem, em Paris, no
ano de 1995. Impossível ter saído indiferente de lá e acredito que os mesmos
sentimentos em mim despertados naquele lugar, também foram compartilhados por
todos os artistas do início do século XX, que se inspiraram nos objetos
daquelas coleções, para conceberem a revolucionária mudança que nos viria
permitir a Arte Moderna, ainda antes de esses objetos estarem reunidos naquele
espaço. Nos tempos atuais, as peças que eu havia visto no Museu do Homem, foram
agrupadas às outras vindas do Museu Nacional das Artes da África e Oceania,
formando o Musée Quai-Branly, organizado e criado no mandato do presidente
Jacques Chirac exatamente naquele ano, em 1995. Poderia ter escolhido várias
outras manifestações culturais africanas para tema principal dessa matéria, mas
Angola tem uma afinidade bem especial para mim: a língua herdada de nossos
colonizadores portugueses, que acabou nos tornando, por assim dizer, meio
cúmplices na caminhada de nossas histórias.
Figura masculina em madeira. Costa ocidental africana.
Se hoje falamos claramente sobre os objetos produzidos por
todos os povos africanos como “obras de arte”, o mesmo não se podia dizer há
cerca de 120 anos, quando esses objetos foram considerados pela primeira vez
como material artístico. Evidentemente que a Arte, tanto como conceito como
instituição é um produto do mundo ocidental, particularmente europeu. Eram os
europeus então, quem determinavam, até o início do século XX, o que poderia ser
enquadrado dentro do termo “Arte”, principalmente se fosse uma produção externa
ao continente europeu. Foi em 1915, que os primeiros objetos angolanos
receberam a atribuição de “Arte” dada pelos europeus, como nos conta Carl
Einstein, no livro A Escultura Negra e Outros Escritos. Entre elas, estavam
principalmente as peças de origem Bakongo e Cokwé. As primeiras vanguardas
artísticas do século XX viram e se encantaram com a grande quantidade de
objetos que chegavam de todas as colônias da África e Oceania. Na linha de
frente dessa vanguarda estavam nomes como Pablo Picasso, Fernand Leger, André
Derain, Charles Braque e Henri Matisse.
Máscara facial da costa ocidental africana.
Praticamente todas as coleções de arte primitiva africana
foram saqueadas durante as expedições de países europeus, feitas principalmente
nos séculos XVIII, XIX e até algumas décadas do século XX. Se por um lado
evidenciam um ultraje ao patrimônio cultural daquelas nações, por outro
trouxeram para o conhecimento do resto do mundo, uma arte que viria
revolucionar e alterar definitivamente o fazer artístico dos novos tempos. A
grande ruptura da arte acadêmica que se realizava em quase todo o continente
europeu para uma arte dita hoje como “moderna”, só teve maior êxito com as
muitas experiências expressivas realizadas pela vanguarda citada anteriormente,
principalmente por Pablo Picasso. Em “As donzelas de Avignon”, por exemplo, é
marcante a influência da arte estatuária africana nas fisionomias das banhistas
representadas na cena. A simplicidade das linhas e a expressividade que
emanavam tais peças oriundas de território africano foram um fator determinante
para os experimentos que se estenderiam a muitas vertentes da Arte Moderna (com
todas as suas variantes). Não é exagero afirmar, então, que a arte africana
primitiva abriu os caminhos para uma nova arte que se irrompeu por todo o
século XX. Todas as peças que foram levadas para a Europa, vindas de Gana,
Gabão, Angola, Sudão, Zâmbia e todas as outras regiões africanas influentes
naquele período, carregavam consigo um estímulo para uma nova visão artística,
mais simplificada e objetiva.
Certamente, essa máscara Babangue, originária do Congo,
tenha influenciado enormemente Pablo Picasso na composição de
As Donzelas de Avignon, abaixo.
PABLO PICASSO - As donzelas de Avignon
Óleo sobre tela - 243 x 233
Museu de Arte Moderna, Nova York.
A Arte Primitiva
Africana é basicamente estatuária ou composta de objetos (máscaras, potes,
armas, adornos, colares...). Há nos povos africanos, de uma maneira geral, a
necessidade de uma arte mais tátil, palpável no sentido mais amplo da palavra.
Parece uma unanimidade de todo o continente, a necessidade intensa de volumes,
que constituem massas quase agressivas. Essas obras incorporam uma intensa
energia, que parece avançar para cima de quem as observa. Todos os artistas
africanos, mesmo os mais remotos, já tinham uma habilidade nata no domínio da
tridimensionalidade, passando da escultura propriamente dita para o entalhe,
tanto em baixo quanto em alto relevo. E faziam e fazem isso com a maior
facilidade. Mas é Valdomiro Santana Júnior, quem nos empresta uma bela
definição para a Arte Africana: “Se desejarmos compreender a expressão
artística africana, precisamos nos reputar as reflexões da alma humana em sua
busca pela essência das coisas, tão "subliminarmente" contidas na
simplicidade destas, seja, um pedaço de madeira, pedra, marfim, metal, etc.
Objetos feitos de materiais naturais embutidos de valores arquetípicos que
velam o seu simbolismo. Apenas um olhar e a audição puros, não serão
suficientes para extrair-lhes os significados implícitos nas obras Africanos.
São obras que estimulam a imaginação e nos remetem à leitura de outros
universos, uma linguagem primordial inerente à natureza que expressa o elo de
comunicação com o infinito. Elas nos introduzem a reflexão e se nos despirmos
das sofisticações do nosso tempo poderemos mergulhar num instante imemoriável,
pois nos impõe seu caráter postulante e empírico implícitos na excitação
exterior de suas formas.
NEVES E SOUZA - Cena antiga de Angola - Hotel Turismo no Lobito
O virtual é como o corpo, um
elemento intermediário entre a essência de sua significação e sua representação
física na forma. O elemento virtual, a imagem, representa esse conteúdo
essencial e cumpre muito mais com o que se espera abstrair, por exemplo, num
trabalho artístico. A arte espontânea que brota na simplicidade desse povo, em
suas várias concepções, vela o aspecto que nos intriga inconscientemente,
enquanto buscamos abstrair a essência, nos restam apenas a intelecção e
beleza.
Obras cuja natureza evocam uma
metafísica, suscitando atender a parte mais ínfima, orgânica e complexa da
psique que lhes representam "bens de ordem moral, política e
cultural". Uma clara expressão de respeito aos valores naturais e
ambientais, concebidos como "bens da alma", emergem da terra - Mãe
África.”
Bantu Tabasisa e Tandu, artistas primitivistas angolanos, em exposição em São Paulo.
A divisão política atual do
continente africano nem sempre insere dentro de cada país apenas as
manifestações culturais daquele país. São divisões que não respeitam as
abrangências culturais de cada cultura, muitas delas criadas em meados do
século XX. Sendo assim, as mesmas atividades culturais de um povo podem ser
praticadas em territórios políticos diferentes. Em todas as culturas africanas,
a arte é sempre exercida por uma influência muito forte de apelos religiosos,
sociais e políticos. Os objetos tem então essa função de estabilidade, ordem e
segurança. Não é diferente na arte de Angola.
Dezoito províncias formam a
República de Angola. Como ocupam regiões bem distintas, cada uma delas possui
suas particularidades, mesmo que não tão relevantes, mas fazendo com que
cada grupo etno-linguístico do país tenha a sua própria expressão artística. A
arte angolana utiliza como principais materiais a madeira, bronze, marfim,
malachite e vários tipos de cerâmica.
Exposição de arte angolana na Hungria.
O texto seguinte é de Adriano
Mixingue e faz compreender muito bem o significado que possui o aspecto
religioso na arte africana: “Na busca pelo
divino, o ser humano precisa lidar ao mesmo tempo com o mundo real. Em
decorrência da conscientização, influi no comportamento no que se pressupõem
existir entre o plano visível e o plano espiritual. O africano, geralmente
acredita que Deus não opera sozinho, pois estaria ocupado demais para fazê-lo,
e compreendem que as entidades nas quais acreditam trabalham para Deus, e que
se lutarem contra essa manifestação espiritual não seriam dignos da proteção ou
respeito dos espíritos que os chamam, pois estariam lidando com forças que
desconhecem. Eles se deixam penetrar pelos espíritos na busca por uma segurança
maior, alguma garantia de sustentação de sua saúde, de seu caminho de vida, de
seus valores materiais, morais, políticos e emocionais, e reagem ao
"chamado espiritual" numa mescla de respeito e medo às ameaças
inerentes na vida. Ora, independente de primordialidade e contemporaneidade,
tais aspirações são suscitadas pelos seres humanos de qualquer lugar do planeta.
Uma postura primordial, encerrada na psique do homem em tudo que possa
representar o desconhecido, observado em todas as culturas em sua história
original.” Só assim é possível entender o grande apelo à produção artística de
estátuas, pois elas parecem ligar ao poder de um outro mundo. O aspecto
negativo de uma globalização excessiva dessa arte estatuária importante do
país, é que a produção começou a ter uma “escala industrial”, pronta para
atender ao turista de todas as partes do mundo, ávido por um pouco daquela
produção artística do país. Muitas obras já não possuem a ligação cultural que
tinham no passado. Certamente, a arte angolana mais famosa é o “Pensador de
Cokwe”, uma obra com simetria perfeita e grande harmonia.
O Pensador de Cokwe, importante manifestação
da escultura angolana.
Há três períodos
muito distintos da arte em Angola: O primeiro deles nos remete a pesquisas
arqueológicas, revelando obras rupestres, principalmente de grutas. O segundo,
de caráter mais nacionalista, se deu logo após a independência do país,
ocorrida em 1975. Foi nesse período que formou um grande número de artistas
plásticos. O período contemporâneo, marcado principalmente por uma era de paz
no país, após longos conflitos internos, é também um período onde os artistas
voltam novamente os olhos para as origens artísticas do país, reinterpretando
antigos temas e trazendo todos eles para seus experimentos atuais. Não é exagero afirmar que Angola assume hoje,
um dos postos de destaque da arte contemporânea africana, com vários artistas
conhecidos em diversas partes do mundo. É importante afirmar que nesses três
períodos, a arte do país sempre manteve uma unidade em sua linguagem.
Veja alguns dos mais influentes artistas da atualidade:
ANTONIO OLE - Páginas ocultas, os órgãos roubados
Mista
ANTONIO OLE - Townshipwall no 611
Mista - 500 x 600
ANTÓNIO FELICIANO KIDÁ - Tambores
Antônio Tomás Ana - Etona em início de escultura
ANTONIO TOMÁS ANA ETONA - Nicodemos
Escultura
FABRÍCIO DOM - A pensadora
Acrílica sobre tela
ÁLVARO CARDOSO - Perfil
Mista
VICTOR TEIXEIRA (VITEIX) - Sem título
Mista sobre tela
A África é inexplicável... com toda sua história e beleza!
ResponderExcluirA África é uma obra de arte!
Felicidades meu amigo, valeu pela bela matéria!
Olá Vidal, toda vez que algo de novo visita a história da arte, é da África que vem. Foi sempre assim, em toda a história.
ExcluirGrande abraço, amigo. Obrigado pela sua companhia!
Já tenho curiosidade de ver a próxima matéria...
ResponderExcluirA Africa nos remete a uma saudade que não sabemos de onde vem, mas essa saudade vem mansinha e demora passar, como se dissesse eu sou as tuas origens...
Obrigado José por mais um momento de reflexão.
Abraços
A ciência diz que a África é nossa terra-mãe. A casa de todas as civilizações. Não tenho a menor dúvida disso. Há algo que vem nas veias de todos e que nos faz retornar a esse berço.
ExcluirGrande abraço, amigo!
Não sabia sobre arte angolana, mas pelas minhas obras já se pode concluir que sou admiradora da arte afro... amo o estilo! Adoro as máscaras também!
ResponderExcluirConfesso que também sabia bem pouco, até há pouco tempo. Há todo um universo a se explorar por lá.
ExcluirGrande abraço, Izabel!