domingo, 4 de agosto de 2013

ARTE EM ANGOLA E AS TRILHAS PARA A ARTE MODERNA


Quero ressaltar logo de início que essa matéria não teria sido composta sem a ajuda inestimável de Urânia Dias, uma angolana que nasceu em Lubango, mas que atualmente reside na cidade portuguesa de Sesimbra. Urânia foi me apresentando alguns artistas angolanos e me direcionando para alguns sites específicos da cultura daquele povo, bem como colaborando com o envio de algumas imagens. Foi através dela que cheguei a Adriano Mixingue, cuja publicação na página do Consulado de Angola também foi de extrema valia. Muito ajudaram também as lembranças da visita que fiz ao Museu do Homem, em Paris, no ano de 1995. Impossível ter saído indiferente de lá e acredito que os mesmos sentimentos em mim despertados naquele lugar, também foram compartilhados por todos os artistas do início do século XX, que se inspiraram nos objetos daquelas coleções, para conceberem a revolucionária mudança que nos viria permitir a Arte Moderna, ainda antes de esses objetos estarem reunidos naquele espaço. Nos tempos atuais, as peças que eu havia visto no Museu do Homem, foram agrupadas às outras vindas do Museu Nacional das Artes da África e Oceania, formando o Musée Quai-Branly, organizado e criado no mandato do presidente Jacques Chirac exatamente naquele ano, em 1995. Poderia ter escolhido várias outras manifestações culturais africanas para tema principal dessa matéria, mas Angola tem uma afinidade bem especial para mim: a língua herdada de nossos colonizadores portugueses, que acabou nos tornando, por assim dizer, meio cúmplices na caminhada de nossas histórias.

Figura masculina em madeira. Costa ocidental africana.

Se hoje falamos claramente sobre os objetos produzidos por todos os povos africanos como “obras de arte”, o mesmo não se podia dizer há cerca de 120 anos, quando esses objetos foram considerados pela primeira vez como material artístico. Evidentemente que a Arte, tanto como conceito como instituição é um produto do mundo ocidental, particularmente europeu. Eram os europeus então, quem determinavam, até o início do século XX, o que poderia ser enquadrado dentro do termo “Arte”, principalmente se fosse uma produção externa ao continente europeu. Foi em 1915, que os primeiros objetos angolanos receberam a atribuição de “Arte” dada pelos europeus, como nos conta Carl Einstein, no livro A Escultura Negra e Outros Escritos. Entre elas, estavam principalmente as peças de origem Bakongo e Cokwé. As primeiras vanguardas artísticas do século XX viram e se encantaram com a grande quantidade de objetos que chegavam de todas as colônias da África e Oceania. Na linha de frente dessa vanguarda estavam nomes como Pablo Picasso, Fernand Leger, André Derain, Charles Braque e Henri Matisse.

Máscara facial da costa ocidental africana.

Praticamente todas as coleções de arte primitiva africana foram saqueadas durante as expedições de países europeus, feitas principalmente nos séculos XVIII, XIX e até algumas décadas do século XX. Se por um lado evidenciam um ultraje ao patrimônio cultural daquelas nações, por outro trouxeram para o conhecimento do resto do mundo, uma arte que viria revolucionar e alterar definitivamente o fazer artístico dos novos tempos. A grande ruptura da arte acadêmica que se realizava em quase todo o continente europeu para uma arte dita hoje como “moderna”, só teve maior êxito com as muitas experiências expressivas realizadas pela vanguarda citada anteriormente, principalmente por Pablo Picasso. Em “As donzelas de Avignon”, por exemplo, é marcante a influência da arte estatuária africana nas fisionomias das banhistas representadas na cena. A simplicidade das linhas e a expressividade que emanavam tais peças oriundas de território africano foram um fator determinante para os experimentos que se estenderiam a muitas vertentes da Arte Moderna (com todas as suas variantes). Não é exagero afirmar, então, que a arte africana primitiva abriu os caminhos para uma nova arte que se irrompeu por todo o século XX. Todas as peças que foram levadas para a Europa, vindas de Gana, Gabão, Angola, Sudão, Zâmbia e todas as outras regiões africanas influentes naquele período, carregavam consigo um estímulo para uma nova visão artística, mais simplificada e objetiva.

Certamente, essa máscara Babangue, originária do Congo,
tenha influenciado enormemente Pablo Picasso na composição de
As Donzelas de Avignon, abaixo.

PABLO PICASSO - As donzelas de Avignon
Óleo sobre tela - 243 x 233
Museu de Arte Moderna, Nova York.


A Arte Primitiva Africana é basicamente estatuária ou composta de objetos (máscaras, potes, armas, adornos, colares...). Há nos povos africanos, de uma maneira geral, a necessidade de uma arte mais tátil, palpável no sentido mais amplo da palavra. Parece uma unanimidade de todo o continente, a necessidade intensa de volumes, que constituem massas quase agressivas. Essas obras incorporam uma intensa energia, que parece avançar para cima de quem as observa. Todos os artistas africanos, mesmo os mais remotos, já tinham uma habilidade nata no domínio da tridimensionalidade, passando da escultura propriamente dita para o entalhe, tanto em baixo quanto em alto relevo. E faziam e fazem isso com a maior facilidade. Mas é Valdomiro Santana Júnior, quem nos empresta uma bela definição para a Arte Africana: “Se desejarmos compreender a expressão artística africana, precisamos nos reputar as reflexões da alma humana em sua busca pela essência das coisas, tão "subliminarmente" contidas na simplicidade destas, seja, um pedaço de madeira, pedra, marfim, metal, etc. Objetos feitos de materiais naturais embutidos de valores arquetípicos que velam o seu simbolismo. Apenas um olhar e a audição puros, não serão suficientes para extrair-lhes os significados implícitos nas obras Africanos. São obras que estimulam a imaginação e nos remetem à leitura de outros universos, uma linguagem primordial inerente à natureza que expressa o elo de comunicação com o infinito. Elas nos introduzem a reflexão e se nos despirmos das sofisticações do nosso tempo poderemos mergulhar num instante imemoriável, pois nos impõe seu caráter postulante e empírico implícitos na excitação exterior de suas formas.

NEVES E SOUZA - Cena antiga de Angola - Hotel Turismo no Lobito

O virtual é como o corpo, um elemento intermediário entre a essência de sua significação e sua representação física na forma. O elemento virtual, a imagem, representa esse conteúdo essencial e cumpre muito mais com o que se espera abstrair, por exemplo, num trabalho artístico. A arte espontânea que brota na simplicidade desse povo, em suas várias concepções, vela o aspecto que nos intriga inconscientemente, enquanto buscamos abstrair a essência, nos restam apenas a intelecção e beleza. 
Obras cuja natureza evocam uma metafísica, suscitando atender a parte mais ínfima, orgânica e complexa da psique que lhes representam "bens de ordem moral, política e cultural". Uma clara expressão de respeito aos valores naturais e ambientais, concebidos como "bens da alma", emergem da terra - Mãe África.”

Bantu Tabasisa e Tandu, artistas primitivistas angolanos, em exposição em São Paulo.

A divisão política atual do continente africano nem sempre insere dentro de cada país apenas as manifestações culturais daquele país. São divisões que não respeitam as abrangências culturais de cada cultura, muitas delas criadas em meados do século XX. Sendo assim, as mesmas atividades culturais de um povo podem ser praticadas em territórios políticos diferentes. Em todas as culturas africanas, a arte é sempre exercida por uma influência muito forte de apelos religiosos, sociais e políticos. Os objetos tem então essa função de estabilidade, ordem e segurança. Não é diferente na arte de Angola.
Dezoito províncias formam a República de Angola. Como ocupam regiões bem distintas, cada uma delas possui suas particularidades, mesmo que não tão relevantes, mas fazendo com que cada grupo etno-linguístico do país tenha a sua própria expressão artística. A arte angolana utiliza como principais materiais a madeira, bronze, marfim, malachite e vários tipos de cerâmica.

Exposição de arte angolana na Hungria.

O texto seguinte é de Adriano Mixingue e faz compreender muito bem o significado que possui o aspecto religioso na arte africana: “Na busca pelo divino, o ser humano precisa lidar ao mesmo tempo com o mundo real. Em decorrência da conscientização, influi no comportamento no que se pressupõem existir entre o plano visível e o plano espiritual. O africano, geralmente acredita que Deus não opera sozinho, pois estaria ocupado demais para fazê-lo, e compreendem que as entidades nas quais acreditam trabalham para Deus, e que se lutarem contra essa manifestação espiritual não seriam dignos da proteção ou respeito dos espíritos que os chamam, pois estariam lidando com forças que desconhecem. Eles se deixam penetrar pelos espíritos na busca por uma segurança maior, alguma garantia de sustentação de sua saúde, de seu caminho de vida, de seus valores materiais, morais, políticos e emocionais, e reagem ao "chamado espiritual" numa mescla de respeito e medo às ameaças inerentes na vida. Ora, independente de primordialidade e contemporaneidade, tais aspirações são suscitadas pelos seres humanos de qualquer lugar do planeta. Uma postura primordial, encerrada na psique do homem em tudo que possa representar o desconhecido, observado em todas as culturas em sua história original.” Só assim é possível entender o grande apelo à produção artística de estátuas, pois elas parecem ligar ao poder de um outro mundo. O aspecto negativo de uma globalização excessiva dessa arte estatuária importante do país, é que a produção começou a ter uma “escala industrial”, pronta para atender ao turista de todas as partes do mundo, ávido por um pouco daquela produção artística do país. Muitas obras já não possuem a ligação cultural que tinham no passado. Certamente, a arte angolana mais famosa é o “Pensador de Cokwe”, uma obra com simetria perfeita e grande harmonia.

O Pensador de Cokwe, importante manifestação
da escultura angolana.

Há três períodos muito distintos da arte em Angola: O primeiro deles nos remete a pesquisas arqueológicas, revelando obras rupestres, principalmente de grutas. O segundo, de caráter mais nacionalista, se deu logo após a independência do país, ocorrida em 1975. Foi nesse período que formou um grande número de artistas plásticos. O período contemporâneo, marcado principalmente por uma era de paz no país, após longos conflitos internos, é também um período onde os artistas voltam novamente os olhos para as origens artísticas do país, reinterpretando antigos temas e trazendo todos eles para seus experimentos atuais.  Não é exagero afirmar que Angola assume hoje, um dos postos de destaque da arte contemporânea africana, com vários artistas conhecidos em diversas partes do mundo. É importante afirmar que nesses três períodos, a arte do país sempre manteve uma unidade em sua linguagem.
Veja alguns dos mais influentes artistas da atualidade:

ANTONIO OLE - Páginas ocultas, os órgãos roubados
Mista

ANTONIO OLE - Townshipwall no 611
Mista - 500 x 600

ANTÓNIO FELICIANO KIDÁ - Tambores

Antônio Tomás Ana - Etona em início de escultura

ANTONIO TOMÁS ANA ETONA - Nicodemos
Escultura

FABRÍCIO DOM - A pensadora
Acrílica sobre tela

ÁLVARO CARDOSO - Perfil
Mista

VICTOR TEIXEIRA (VITEIX) - Sem título
Mista sobre tela

6 comentários:

  1. A África é inexplicável... com toda sua história e beleza!
    A África é uma obra de arte!
    Felicidades meu amigo, valeu pela bela matéria!

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    1. Olá Vidal, toda vez que algo de novo visita a história da arte, é da África que vem. Foi sempre assim, em toda a história.
      Grande abraço, amigo. Obrigado pela sua companhia!

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  2. Já tenho curiosidade de ver a próxima matéria...
    A Africa nos remete a uma saudade que não sabemos de onde vem, mas essa saudade vem mansinha e demora passar, como se dissesse eu sou as tuas origens...
    Obrigado José por mais um momento de reflexão.
    Abraços

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    1. A ciência diz que a África é nossa terra-mãe. A casa de todas as civilizações. Não tenho a menor dúvida disso. Há algo que vem nas veias de todos e que nos faz retornar a esse berço.
      Grande abraço, amigo!

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  3. Não sabia sobre arte angolana, mas pelas minhas obras já se pode concluir que sou admiradora da arte afro... amo o estilo! Adoro as máscaras também!

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    1. Confesso que também sabia bem pouco, até há pouco tempo. Há todo um universo a se explorar por lá.
      Grande abraço, Izabel!

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