quinta-feira, 8 de setembro de 2016

WILLIAM BOUGUEREAU - Parte 2

WILLIAM BOUGUEREAU - Admiração - Óleo sobre tela - 147 x 200 - 1897

WILLIAM BOUGUEREAU - Mulher de Cervara e sua criança
Óleo sobre tela - 109,2 x 83,2 - 1861

Ao longo da História da Arte, é de praxe que estilos e movimentos se alternem como gostos populares. É normal que artistas se tornem as “estrelas da vez” e conquistem fama e prestígio imensuráveis. Evidentemente, isso nem sempre acontece da maneira mais amigável possível, porque na Arte, como em nenhum outro lugar, os egos se inflamam de uma maneira desproporcional. Quem está no domínio do cenário não quer perder as rédeas e quem está para assumir o espaço, faz o impossível para conquista-lo. Os anos finais do século XIX testemunharam uma das batalhas mais ferrenhas que já aconteceram no campo das artes. A França foi o palco de toda essa controvérsia, uma vez que estava à frente dos acontecimentos culturais da Europa. O Academicismo, que dominava a cena no momento, se viu açoitado, humilhado e vencido pelas correntes modernistas, que jogaram com todas as cartas que podiam e não pouparam ninguém. William Bouguereau, o grande defensor do ensino acadêmico e o nome de destaque daquela época, serviu como uma espécie de bode expiatório para essa batalha. Batalha que lhe custou a glória e os méritos, conquistados por toda uma vida dedicada ao que mais gostava de fazer.

WILLIAM BOUGUEREAU - A primeira discórdia, Caim e Abel
Óleo sobre tela - 196,2 x 150,5 - 1861

WILLIAM BOUGUEREAU - Biblis - Óleo sobre tela - 50 x 80,5 - 1884

Mas, o que realmente aconteceu para que as coisas chegassem a tal ponto? Como pode, alguém que era considerado o mais competente artista vivo de seu tempo, se transformar no mais desprezível artista do momento, a ponto de ter seu nome apagado de todas as futuras enciclopédias e livros? O que leva um artista do nível de Bouguereau, ter seus quadros escondidos nos depósitos de museus durante décadas? Por que, de uma hora para outra, aquele que era a referência maior do ideal artístico, se tornara a referência do que deveria ser evitado? Para responder a essas perguntas e ser imparcial com os resultados das respostas que sucederam àquele triste período, é preciso conhecer um pouco mais como tudo se passava naquela época, principalmente com Bouguereau, o mais prejudicado com tudo aquilo acontecido naquele período.

WILLIAM BOUGUEREAU
A flagelação de Nosso Senhor Jesus Cristo
Óleo sobre tela - 309 x 210 - 1880

WILLIAM BOUGUEREAU - Pietá
Óleo sobre tela -222,9 x 149,2 - 1876

William Bouguereau se adequou com todas as forças possíveis para aquilo que sonhou um dia para sua arte, tornar-se um verdadeiro artista acadêmico. Mas, o que vem a ser Academicismo e o que isso trouxe para o cenário artístico mundial? Academismo é um método de ensino nascido no século XVI, fruto maior das ideias renascentistas. Em meados do século XIX, essa corrente de pensamento chegou a obter uma influência dominante. As academias davam grande valor ao que foi experimentado e consolidado pelos antigos mestres, realçando ainda mais os ensinamentos deles baseados na tradição clássica. Além de ter um caráter estético, havia também uma ética, através da qual era traçada toda a proposta pedagógica de quem se propunha a tornar um acadêmico. Um dos objetivos maiores idealizados na tradição acadêmica, é que a arte educasse o público; não só apenas os artistas que a praticavam; mas também a todos aqueles que a admirassem de alguma forma. E que essa educação proposta, transformasse toda a sociedade para melhor. Como sempre dependeu dos poderes de cada governante, os artistas acadêmicos acabavam sendo envolvidos por compromissos políticos e sociais. Graças a essa organização que funcionava muito bem, muito do que existe hoje como referência de museus e galerias de arte, nasceram da vontade acadêmica de preservar a cultura e deixa-la para todas as gerações futuras.

WILLIAM BOUGUEREAU - O nascimento de Vênus
Óleo sobre tela - 300 x 217 - 1879

WILLIAM BOUGUEREAU - Um vento natural - Óleo sobre tela - 1881

Para ser um artista acadêmico, no rigor da palavra, o caminho era bastante árduo. Havia todo um aprendizado sistemático e graduado, ministrado por um mestre competente, que repassava os ensinamentos de mestres do passado. Além de todo o aparato teórico, obtido em anos de profundo estudo, que abrangiam as mais variadas áreas de ensino (História, Filosofia, Mitologia, Poesia, Religião...), o artista precisava ser, acima de tudo, muito eficiente em sua profissão. A habilidade para a execução de um desenho rigoroso era indispensável, pois nele estava toda a base da obra acadêmica. Era pelo desenho preciso que se estruturava toda a composição no início da obra, como também permitia alterações seguras no decorrer dela. Tudo começava com inúmeros esboços preparatórios, onde todos os elementos da obra eram posicionados minuciosamente. O conhecimento de anatomia era exigido com rigores extremos, uma vez que toda composição acadêmica estava situada em torno da figura humana.

WILLIAM BOUGUEREAU - Uma bacante e uma cabra - Óleo sobre tela - 160,5 x 228 - 1862

WILLIAM BOUGUEREAU - O retorno da colheita - Óleo sobre tela - 241,3 x 170,1 - 1878

Bouguereau não só se muniu de todos os atributos citados anteriormente, como conseguiu supera-los em todos os quesitos. Impressionava, acima de tudo, a suavidade e a textura que conseguia na reprodução da pele humana e como representava impecavelmente as formas e gestos obtidos nas mãos, pés e faces de seus personagens. O perfeccionismo não era uma exigência trilhada por Bouguereau, mas, uma normalidade. Cada centímetro de sua tela era minuciosamente trabalhado, mantendo um acabamento de altíssima qualidade. As marcas de pincéis eram praticamente invisíveis, fundidas em laboriosos esfumatos. Ele parecia sempre insatisfeito com os resultados, retocando as composições, mesmo depois de dá-las por terminadas. A consequência disso tudo era a excelência dominada com anos e anos de execução. Bouguereau era a referência maior em todos os lugares que passava e conquistava todos os prêmios que almejava e concorria. O domínio profundo das normas acadêmicas lhe trouxe cargos importantes, tanto nas escolas, como junto ao poder que as financiava. Começava assim, um perigoso caminho na vida do artista.

WILLIAM BOUGUEREAU
Zenóbia encontrada pelos pastores nas margens do Araxes
Óleo sobre tela - 148 x 118 - 1850

WILLIAM BOUGUEREAU - Dante e Virgílio no inferno
Óleo sobre tela - 280,5 x 225,3 - 1850

Paris era, inevitavelmente, a meca cultural do mundo naquele momento, e o Salão, a grande vitrine que testemunhava esse domínio cultural. O Salão era um evento competitivo, que tinha um caráter artístico, mas também comercial. Era ali que os artistas consagrados se exibiam e também era ali que os iniciantes tinham a oportunidade de se projetar para o mundo das artes. O acesso ao Salão não era nada fácil, pois os acadêmicos eram os organizadores do evento, e utilizavam dele como uma ferramenta poderosa no controle do que deveria ou não ser produzido pelos artistas naquele momento. Já que a meta do Academicismo sempre foi implantar um sistema que prezasse pelo culto às referências clássicas, serviam para ingressar ao salão somente as obras que se encaixassem nas temáticas históricas, religiosas ou mitológicas. Essa espécie de controle da liberdade de expressão, com o passar dos anos, já era visto com desconfiança por muitos artistas. O próprio público já começava a ficar entediado em ver corredores e mais corredores de obras com as mesmas temáticas. Mas, nem mesmo assim os organizadores do Salão cediam. Bouguereau, como um dos líderes do movimento acadêmico naquele momento, e presidente da Sociedade dos Artistas Franceses, a mesma que organizava e ditava as normas do salão, começou a instituir severas restrições a obras que não se encaixassem nos propósitos da instituição e do evento, irritando ainda mais as novas propostas artísticas que desejavam um espaço para expor. A lista de trabalhos recusados na seleção para o salão enchia galpões e aumentava ainda mais a ira dos adversários àquele sistema.

WILLIAM BOUGUEREAU - Oréadas - Óleo sobre tela - 236 x 182 - 1902

WILLIAM BOUGUEREAU - A primeira manhã - Óleo sobre tela - 203 x 252 - 1888

Os tempos acenavam mudanças significativas em todas as direções. A classe média, que começava a frequentar os salões e se tornar um importante comprador de obras, e que nem sempre tinha a mesma bagagem cultural da elite dominante, para absorver a arte clássica de até então, começava a abrir os olhos para outros tipos de manifestações. Queriam ver ali, também expostas, obras do cotidiano de todos, cenas pitorescas e realistas, bem como temas exóticos, como os da Idade Média ou do Oriente. Muitos artistas, há tempos já produziam dentro dessas novas propostas, mas, esses nunca conseguiam oportunidade para expor no grande salão. O próprio Bouguereau, à partir da década de 1860, começou a livrar da produção histórica e religiosa, com temática rigorosamente acadêmica, que sempre foi a marca de sua reputação. Como o gosto dos clientes mudava, ele adaptava facilmente a eles. Produzindo séries intermináveis de nus, cada vez mais sensuais e provocantes, bem como anjos e cupidos entregues à mais deleitosa perdição. Nesse momento, seus opositores o atacavam ainda mais ferozmente, afirmando que ele prostituía sua arte e seus propósitos, em nome de dinheiro e status. Ele defendia, afirmando que apesar de mesmo produzindo algo popular, ainda o fazia com classe e rigores técnicos, e não tinha culpa, se os outros não conseguiam fazer o mesmo.

  
Esquerda: WILLIAM BOUGUEREAU - Momentos do dia, Aurora - Óleo sobre tela - 124,4 x 63,7 - 1881
Centro: WILLIAM BOUGUEREAU - Momentos do dia, Crepúsculo - Óleo sobre tela - 1882
Direita: WILLIAM BOUGUEREAU - Momentos do dia, Noite - Óleo sobre tela - 208,2 x 107,3 - 1883

Se havia motivos que irritassem os adversários de Bouguereau, ele parecia já ter provocado todos. Suas obras atingiam valores astronômicos. Corria até uma piada dizendo que ele perdia cinco francos, toda vez que largava seus pincéis para urinar. Esse tipo de extravagância só nutria a inveja e a ira dos que iam em desencontro aos seus propósitos. Muitos artistas, que praticamente viviam em petição de miséria, não se conformavam em ver as oportunidades restritas nas mãos de uma minoria elitizada de artistas. Os modernistas, principalmente os impressionistas, que há anos buscavam algum espaço, já caíam no gosto da nova classe consumista, pois começavam a expor e conquistar um público considerável nos salões alternativos, já que eram sistematicamente recusados nos salões principais. Foram justamente eles, os mais implacáveis contra Bouguereau e seus seguidores. Degas, um dos ícones do movimento impressionista, chegou a criar o termo “bougueresco”, como um sinônimo pejorativo a tudo aquilo que lembrava o que era produzido por Bouguereau e sua turma. O Academicismo já era visto por muitos como artificialidade, um sistema que se embotava por falta de originalidade e que minava a criatividade dos que queriam produzir algo inusitado.

WILLIAM BOUGUEREAU - Na fonte
Óleo sobre tela - 142 x 86,5 - 1897

WILLIAM BOUGUEREAU - Uma infância idílica - Óleo sobre tela - 102 x 130 - 1900

Os modernistas atraíam vários artistas para sua briga, principalmente porque defendiam um movimento sem amarras, onde a liberdade de expressão era ilimitada. Com os modernistas dominando todos os olhares e atraindo a atenção de marchands, colecionadores e novos espaços de exposição, o período acadêmico chegou ao fim. Pelo menos, a tirania imposta pelos líderes do movimento foi cedendo paulatinamente ao gosto da população e principalmente dos artistas. As obras acadêmicas já não vendiam mais e literalmente desapareceram do mercado. Os seus artistas foram caindo no esquecimento e se tornou difícil ouvir qualquer referência sobre eles até mesmo nas escolas de arte, a não ser como um exemplo do que não fazer. Ficou evidente que a oposição contra os artistas acadêmicos, principalmente Bouguereau, se deu pelo fato de, principalmente ele, ser tecnicamente bom demais no que fazia, ter produzido fortuna quando muitos mal sobreviviam do que produziam e principalmente não ter sido mais tolerante com as vanguardas que conviviam e produziam naquele período, uma vez que estava na liderança das instituições e tinha forte opinião junto aos governos. Todo sistema que se torna arrogante, terá adversários ao longo do caminho.

WILLIAM BOUGUEREAU - A família sagrada
Óleo sobre tela - 137 x 108 - 1863

WILLIAM BOUGUEREAU - Amor fraternal
Óleo sobre tela - 147 x 103,7 - 1851

Até o início do século XX, as obras de Bouguereau eram disputadas avidamente e compradas por milionários de várias regiões da Europa e Estados Unidos. Para muitos, ele era considerado o mais importante artista francês de todos os tempos. Porém, depois de 1920, devido a forte influência de críticos de arte sobre o que gostar e colecionar, e principalmente por Bouguereau ter se posicionado tão fortemente contra os impressionistas, ele foi caindo no descrédito. Durante décadas, seu nome foi esquecido e sequer mencionado nas muitas enciclopédias que foram surgindo ao longo do século XX. Muitos museus, praticamente esconderam seus quadros. Por cerca de sete décadas, Bouguereau se tornou praticamente inexistente, até que, em 1974, uma primeira exposição com obras suas, montada no Museu de Luxemburgo, causou alguma sensação. Em outras mostras montadas nos anos seguintes, alguns críticos contemporâneos ainda insistiam na tecla de que sua obra era vazia e árida, mesmo reconhecendo nele a genialidade técnica quase incomparável.

WILLIAM BOUGUEREAU - Alma Parens - Óleo sobre tela - 230,5 x 139,7 - 1883

Curiosamente, a tirania imposta pelos acadêmicos aos modernistas, quando estavam no poder, é a mesma imposta pelos contemporâneos que dominam o atual cenário. Vê-se claramente que o que está em jogo não é a eficiência ou a produção dos artistas que ainda executam trabalhos acadêmicos ou similares, nem dos muitos mestres passados que tanto contribuíram para que a arte chegasse até aqui, mas, a ameaça do controle de galerias e instituições que lucram fortunas com a venda dos artistas que estão no topo do mercado. Por isso, críticos de arte se tornaram vendedores de novidades e influenciam fortemente a opinião daqueles que não tem discernimento suficiente para escolher um trabalho para adquirir. Tanto naquela época, quanto nessa, a ganância cega os olhos para a verdadeira arte e impõe aquilo sobre o que as pessoas sequer entendem. Se naquela época, as obras acadêmicas foram criticadas por não serem acessíveis à maioria, o pior acontece nos tempos atuais. Exposições são montadas com obras que precisam de quase um formulário para poder explica-las. Não são acessíveis nem mesmo para quem está no mercado de arte.

WILLIAM BOUGUEREAU - A batalha dos Centauros e Lapiths
Óleo sobre tela - 124,5 x 174,3 - 1853

WILLIAM BOUGUEREAU - Pequenas pedintes - Óleo sobre tela - 161 x 93,5 - 1890

Lamentável é ver como um artista, com as qualidades técnicas que possuía um Bouguereau, seja relegado ao isolamento, por um puro capricho daqueles que o temiam fortemente naquele período. Em 2000, o Art Renewal Center, fundado por Fred Ross, artistas e colecionadores favoráveis às belas-artes, vem defendendo os valores anteriormente conquistados pelos trabalhos acadêmicos. A crescente demanda por obras e a grande procura por artista produtores de belas-artes é uma realidade em todo o mundo. A internet tem colaborado bastante para isso, pois, sendo uma galeria aberta e imparcial, as pessoas fazem livremente as suas escolhas. Resta esperar por um dia, onde o respeito às manifestações artísticas, de qualquer espécie, seja o ponto alto da natureza humana. Sendo a única espécie nesse planeta a produzir arte, pelo menos intencionalmente, o homem é bem melhor do que essa mesquinha luta de mercados que existe por aí. Para aqueles que produzem arte, e a fazem com a melhor das boas intenções e prazer, uma frase deixada por Bouguereau continua mais atual do que nunca:

“A cada dia entro em meu estúdio cheio de alegria; à noite, quando a escuridão me obriga a deixá-lo, mal posso esperar pelo dia seguinte. Se eu não pudesse devotar-me à minha amada pintura eu seria um pobre coitado.”

WILLIAM BOUGUEREAU - Autorretrato
Óleo sobre tela - Coleção particular 46 x 38,4 - 1886

6 comentários:

  1. Puxa Zé...genial essa matéria......Parabéns. Como já mencionei, tenho verdadeira paixão pelas obras e história desse artista. Se me permite falar algo sobre essa matéria fantástica, faltou fotos dele, tenho ele pintando no seu estúdio com modelo do natural..é genial..Mas, se fosse colocar cada detalhe, teria que fazer a terceira parte, quarta.....Enfim....Parabéns e obrigado!

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    1. Olá Jesser, obrigado.
      Realmente, ainda há muito que poderia ser falado e mostrado sobre ele. Foi um dos mais completos artistas que já vi.
      Tenho certeza que vou escrever mais sobre ele, futuramente.
      Um grande abraço!

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  2. Com certeza... muito se pode falar sobre este grande mestre... sinceramente: William Bouguereau é magnífico....
    Um final de semana abençoado, meu amigo...

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    1. Para todos que apreciam as belas-artes, falar sobre Bouguereau é quase um dever.
      Grande abraço, Vidal!

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  3. Com certeza um grande mestre! Felizmente vêm ganhando seguidores jovens, prontos à defender sua obra magnifica! Excelente seu blog José, obrigada!

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    1. Há tempos não publico por aqui. O tempo corrido, exigindo prioridades...
      Muito grato por vir!

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