segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

CO-RESPONSABILIDADE CULTURAL (José Rosário)

SIR LAWRENCE ALMA-TADEMA - Escultores da Roma antiga
Óleo sobre tela

O patrimônio cultural de um povo não é apenas o número de monumentos ou as obras que o mesmo conseguiu conservar. Esses, aliás, são os produtos que atestam a prática cultural de cada nação. Muito antes de produzir algo, há a vontade inerente a cada indivíduo de querer produzir algo. É desse desejo que sobrevive a cultura de uma população.
Promover e divulgar cultura é uma prática espontânea e única de cada indivíduo. Ninguém impõe cultura a ninguém. Há que estar aberto interiormente para que a prática se torne real. E a manifestação cultural acontece das maneiras mais diversas possíveis e pelos mais diversos canais.

SIR LAWRENCE ALMA-TADEMA - Um amante da arte romana
Óleo sobre tela

Há o artista, o primeiro instrumento que torna a obra perceptível, seja por uma forma física ou não. Uma música não é uma obra palpável, como é uma escultura, mas nasce igualmente da genialidade e doação de quem a compôs. Há também o comerciante de arte, que socializa e torna acessível ao maior número de pessoas, um produto produzido pelo artista. Uma gravadora não grava única e exclusivamente para ganhar dinheiro, ou pelo menos não deveria, mas também porque acredita que naquele produto, um pedaço de história se fará realidade. Se isso não acontecer, a obra não sobrevive. Um marchand não é apenas alguém que a rigores contábeis se lança a vender produtos. Antes, porém, deverá estar em sintonia com o produto que expõe. É perceptível quando há uma proposta sincera em alguém que se propõe a vender arte e promover cultura. Há, finalmente o consumidor do produto a ser oferecido, ou o público que acolhe tal manifestação artística, incorporando-a no patrimônio cultural a que está inserido.

SIR LAWRENCE ALMA-TADEMA - Uma leitura de Homero
Óleo sobre tela

Ocorre, por muitas vezes, que o produto oferecido não tenha vida longa, ou seja, não impõe como um patrimônio cultural a ser perpetuado. É o caso de muitas das músicas despejadas semanalmente no “comércio”, cuja finalidade é entreter momentaneamente o público “consumidor”. É um risco permanente para o patrimônio cultural de qualquer nação, ter como referência produtos voláteis e sem identidade própria.
Para que a cultura sobreviva e torne a identidade de um povo, todos são chamados a participar desse processo. Pode parecer pouco, mas é no dia-a-dia de cada um, que a cultura se perpetua. Uma simples cantiga de roda que passa de criança em criança, é um dos exemplos mais simples de como promover cultura, depende de muito pouco. Cada pessoa tem uma cota de responsabilidade em perpetuar a cultura do povo no qual está inserido, seja produzindo, divulgando e comercializando ou consumindo os produtos criados por ele.

Schopenhauer

Por que produzimos arte e por que a cultura precisa ser preservada?
Vou usar emprestado de Schopenhauer um raciocínio que considero dos mais belos para justificar o produto de arte e cultura, mesmo que ele seja considerado um dos filósofos mais pessimistas da história. Segundo Schopenhauer, nascer é o primeiro passo que damos para a morte. Cada dia é o degrau descido de uma escada que não tem mais retorno. Essa regra implacável vale para todos nós. Mas, mesmo em todo o seu pessimismo, Schopenhauer consentiu que há somente um fato que, se não impede a descida do degrau, pelo menos a paralisa por alguns instantes: é quando estamos envolvidos e completamente absorvidos por alguma manifestação artística. Seja por uma bela música, que nos invade e faz perceber outros lugares, ou diante de um quadro, um momento da história de alguém que nos quer mostrar. Pode vir na brincadeira de roda, eterno momento que uma criança não deixa escapar, ou na leitura silenciosa de um poema, que alguém escreveu com os sentimentos emprestados de cada um de nós, e parece ser carne de nossa carne. Schopenhauer conclui seu raciocínio, dizendo que se uma manifestação artística atinge e toca o maior número de pessoas possíveis, ela se torna parte daquele povo e vira uma identidade, um patrimônio cultural.
Portanto, que no andar apressado de nossos dias (preciosos degraus que não permitem volta) possamos nos dar o privilégio de, pelos menos, viver outras vidas dentro de nossas vidas. Esses sim, os maiores presentes que uma obra de arte pode nos dar. Sendo tocados por isso, também possamos tocar outras pessoas, para que a vida ligeira, descanse um pouco em cada descida de degrau. É essa, a única responsabilidade que a cultura nos pede.

3 comentários:

  1. Texto maravilhoso Rosário! Não conhecia esse ponto de vista do Schopenhauer. Muito bom!

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  2. TEXTO RIQUÍSSIMO E GENEROSO, COMO SEMPRE !!!


    Uma questão que me ocorre : LAWRENCE ALMA TADEMA era humano???

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